sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ipê amarelo.



              Dona Joana quis a vaidade de planejar um filho, e o sonho do filho próprio abriu-lhe em sangue, grito e placenta ,seu lugar no mundo.
         Nascido em fevereiro,Augusto era mais alegoria que homem.Filho adulado de dona joana,ele levava a vida com a mesma alegria de quem passa uma catraca de metrô numa segunda-feira de manhã. Augusto não gostava de viajar e nem de pão francês,bebia chocolate quente todas as noites,e nunca perdera um dia de trabalho.Um dia esse rapaz saiu da rotina comum e feia,foi assim: atravessando uma esquina movimentada perto de um parque que nunca entrara, um exuberante ipê apareceu, assim como os anjos materializam-se (que nem nos filmes), e tomou  tudo o que antes era vista de Augusto, tonto da beleza viva que o ipê atava ao seu itinerário,ele não viu quando uma bicicleta o atingiu, na queda depois da batida, ele ralou os cotovelos. Lúcia,florista,voltava da loja que Augusto nunca entraria não fosse um ipê amarelo luzindo amor na cidade.
                Ele ficou uns dias afastados do trabalho, e Lúcia pôde apresentá-lo, numa tentativa de recuperar-lhe a queda,às flores mais macias e cheirosas de seu jardim.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A generosidade do mundo.

Porque depois de dez anos aqui, já estranho menos a cidade, o susto é todo dia, porque por aqui todo dia vejo um jeito novo de vestir, de pagar as contas,de dar às mãos a um outro.Ganhei tanto,não imóveis, grana,estabilidade, rendimentos, e esse imperativo consumista que ergue bandeiras e sustenta dores crônicas.Não,a vida me deu gente,pessoas que brilham meus olhos,porque são anjos de luz que me querem bem e que ganham meu amor em palavras e companhia.
Não escolhi uma profissão confortável,escolhi o que está no olho do furacão das mudanças, falo de preposição,prostituição,feminismo, argumentação."Sou professora, todo dia repito essa interrogação "sou professora?"às vezes rindo,outras não. 
Abro livros e traço planos,não sei pensar a longo prazo e se resolvo  estudar é pela possibilidade de descoberta em cada aula, o mundo está para o tumulto, está para um angu de mal entendimento,eu quero mais calma.Quero ir mais vezes aos parques,aos teatros, talvez até o final do ano eu releia Saramago e descubra outro livro de poesia muito bom e ainda desconhecido, preciso comprar cachaça de gengibre e aprender receitas de tortas salgadas.
Eu não estou com pressa para as coisas que chegarão generosamente se tiverem que chegar,meu presente é mágico ,é milagre de corpo em atrito com o mundo, meu corpo com todos os meus sentidos sãos goza meu tempo, minha saliva, meu suor,minha menstruação, minhas unhas e meus dentes estão generosa e abusadamente gozando o meu presente, minhas mãos velhas esperam minhas rugas que já aparecem e minhas pintinhas vermelhas (iguais as da minha mãe) me avisam dos anos.
Envelhecer é muito gostoso. Eu não tenho medo do tempo, eu sou tempo estampado em sentidos e pensamentos.